Em meio a bandeirolas e fogos de artifício, as fogueiras ardem e fazem arder os olhos de quem as observa

Na noite de sexta-feira, 23, véspera de São João, basta entrar no distrito de José Gonçalves (a pouco mais de 20 quilômetros do perímetro urbano de Vitória da Conquista) para constatar que a presença das tradições juninas ali é mais forte do que se supõe.

Já na primeira rua da localidade, uma fileira de fogueiras acaba servindo como uma espécie de complemento à iluminação dos postes. Bandeirolas podem ser vistas por todos os cantos. Os estampidos dos fogos de artifício assustam os desavisados e, inadvertidamente, interrompem algumas conversas.

O cheiro de fumaça, misturado ao aroma das carnes assadas e do quentão, alinha-se também ao odor de pólvora, vindo das explosões de traques e bombinhas, para compor a atmosfera típica de uma noite de São João num lugarejo do sertão.

Enquanto casais dançam sob bandeirolas improvisadas, as fogueiras ardem e fazem arder os olhos de quem as observa. A voz de Luiz Gonzaga e de seus discípulos, ao som típico da zabumba, do triângulo e da sanfona, ecoam pelas varandas das casas – embora, em vários outros cantos, os sons que se sobressaiam sejam mesmo os das guitarras do chamado “forró eletrônico” de Wesley Safadão e outros genéricos, preferido pelos moradores mais jovens.

Mas são mesmo as fogueiras que fazem saltar à vista que a noite, bem mais fria do que de costume, não é comum – elas se espalham pelas calçadas e nem a insistente neblina é capaz de ameaçá-las. É noite de São João. E, para quem aprecia, isso significa que há um ritual em curso, que se repete ano após ano, há várias gerações.

Comida à farta – É assim na casa do lavrador José Soares de Almeida, 59 anos. Sentado num pedaço de tronco na calçada, em frente à fogueira, ele observa crianças estourarem bombas. Parece não se incomodar com o barulho das explosões. Presta mais atenção a outro som, vindo do interior de sua casa – o forró pé de serra, na voz de Edigar Mão Branca, reproduzido no aparelho de som.

A casa está cheia de familiares, que conversam entre si animadamente. Mas qualquer um que chegar ali, mesmo não sendo parente, ele garante que será bem recebido. “A gente fica tudo junto. É assim que começa. Vai chegando de um em um, de dois em dois…”, conta José.

Nesta noite, há bem mais comida do que de costume: um leitão assado (abatido dois dias antes, “pegando tempero” desde então, e assado apenas na tarde do dia da festa), nove frangos e mais de dez quilos de biscoitos – metade deles comprada no Ceasa de Vitória da Conquista, e a outra metade feita por dona Isabel dos Santos, 57, a esposa de José. “O que der vontade de comer, graças a Deus, tem”, garante o agricultor.

Muita comida, bebida nem tanto – Se há fartura em matéria de comida, o mesmo não se pode dizer em relação à bebida alcoólica. Embora ela não falte, José não a disponibiliza em quantidades generosas, como faz com as guloseimas. Garante que a restrição não é por motivos religiosos. “Bebida só dá desmantelo, só dá confusão”, justifica-se, explicando que, quem quiser tomar umas e outras, pode fazê-lo na rua. “Agora, o que comer, aí tem. A gente só mexe com o que come”, diz.

Mas essa postura antialcoólica não é tão rígida assim. José pode não gostar de beber, mas não impede que seus visitantes o façam – e, ainda mais, numa noite de São João. Por isso, dona Isabel preparou seis litros de quentão. Mas, além do abacaxi, do gengibre, do cravo e dos outros ingredientes, acrescentou pouca cachaça, menos que o comum. “Só um pouquinho, para não ficar sem gosto”, explica a matriarca.

‘Alegria, divertimento’ – José e Isabel têm um filho e duas filhas (ele mora em Vitória da Conquista, elas moram fora). A família inteira só costuma se reunir em momentos de festa como o Natal e o São João. Nessas ocasiões, a casa se enche, como na noite junina em que os visitamos. O casal prefere passar o São João em casa, enquanto boa parte do restante da população se diverte no arraial montado na praça principal do distrito.

“Nosso divertimento é dentro de casa”, argumenta o lavrador. “Na rua, tem zoada. E aqui, a gente faz a zoada dentro de casa. Recebe um amigo, recebe um vizinho… É assim”. E esse entra-e-sai, segundo o lavrador, “se brincar, vai até o amanhecer”. Mas isso não é problema, pois sempre sobram petiscos. E, no dia seguinte, eles comem e ainda dividem com a vizinhança.

Tradição – No São João do ano que vem, tudo ocorrerá novamente, mais ou menos da mesma forma – a depender de José e de quem mais, como ele, trouxer nas veias o sangue sertanejo de quem se orgulha de sua simplicidade. “Para nós, é bom demais. É uma alegria, um divertimento nosso. A gente já se acostumou, desde a criação dos pais da gente que a gente tem o costume de fazer. Meu pai nunca faltou de fazer. E eu estou no mesmo ritmo dele”, registra o agricultor.